Quero fazer o elogio do amor puro.
Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade.
Já ninguém quer viver um amor impossível.
Já ninguém aceita amar sem uma razão.
Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática.
Porque dá jeito.
Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado.
Porque se dão bem e não se chateiam muito.
Porque faz sentido.
Porque é mais barato...
O amor transformou-se numa variante psico-socio-bio-ecologica de camaradagem.
A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível.
O amor tornou-se uma questão prática.
O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam 'praticamente' apaixonadas.
Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há.
Estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço.
Já ninguém se apaixona?
Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo?
O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor não é para ser uma ajudinha.
Não para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida...
Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores.
O amor fechou a loja.
Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade.
Amor é amor, é essa beleza, é esse perigo.
O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode.
Tanto faz.
È uma questão de azar.
O nosso amor não é para nos amar, é para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um principio, não é um destino.
O amor não se percebe.
Não dá para perceber.
O amor é um estado de quem o sente.
O amor é a nossa alma, é a nossa alma a desatar.
A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende.
O amor é uma verdade.
O amor é uma coisa, a vida é outra.
O amor é mais bonito que a vida.
A vida que se lixe.
Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre.
Ama-se alguém.
Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente q seja...
O coração guarda o que se nos escapa das mãos.
E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.
Não é para perceber, é sinal de amor puro não se perceber, amar é não se ter, querer e guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado do q quem vive feliz.
Não se pode ceder.
Não se pode resistir.
Não se pode fugir.
A vida é uma coisa, o amor é outra.
A vida dura a vida inteira, mas só o amor puro pode fazer valê-la.
Miguel Esteves Cardoso - Expresso
Miguel Esteves Cardoso - Expresso
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